segunda-feira, 18 de maio de 2009

Luta Antimanicomial – Uma Tentativa de História

Durante os séculos XVIII e XIX, na esteira do pensamento racionalista, surge na Europa a idéia de que humanos legítimos seriam aqueles portadores da razão, enquanto os outros, diferentes, seriam os “alienados”, tais como deficientes, loucos, velhos, crianças, mendigos, vagabundos, homossexuais, prostitutas, ladrões e hereges. Esta perspectiva transforma o significado dado à loucura, que passa então a ser entendida como “doença” e não mais como um fenômeno ligado ao misticismo ou outras formas diferentes de habitar o mundo. Junto a este entendimento, agregam-se os conceitos do louco enquanto incapaz, desprovido de inteligência e perigoso, tendo de ser excluído da sociedade para ser “tratado” e “curado”, obtendo por conseguinte, um “retorno à razão”, à vida. Com isso, surge um conjunto de saberes e práticas que passam a justificar o isolamento-confinamento do louco de seu meio social nos hospitais psiquiátricos, também conhecidos como manicômios. Inaugura-se, assim, um longo período de clausuras, durante o qual se multiplicavam hospícios e se intensificava a segregação de qualquer diferença presente na sociedade. No Brasil estas práticas não foram diferentes, sendo implementadas com a mesma força, já que autorizadas pelas mesmas perspectivas.
A partir da segunda metade dos anos 70, no Brasil, aconteceram lutas políticas e culturais que foram condição para novos jeitos, hoje parece, um pouco mais livres. Movimentos sociais e populares aconteceram e colaboraram para modificar algumas organizações como partidos e sindicatos, e também fortificaram as mobilizações pela anistia, pelas eleições diretas, ou seja, movimentos que representaram momentos de intensa participação social e política.
Estas mobilizações sociais, somadas às experiências na Europa de desinstitucionalização dos hospitais psiquiátricos, contribuíram para a constituição da Reforma Psiquiátrica no cenário brasileiro.
Ela questionava os fazeres dos hospitais psiquiátricos, na medida em que os comparava às práticas de tortura e de maus tratos, colocando a política psiquiátrica brasileira como promotora de violência e marginalização. É uma manifestação social e política que reivindica condições dignas de tratamento ao louco, agora chamado de portador de transtorno mental, e a outras formas de diferença que vinham sempre sendo apartadas do convívio social. O movimento propõe a criação de serviços mais humanos onde a liberdade e o convívio social sejam elementos indispensáveis ao tratamento.
Toda essa movimentação irá culminar no projeto de lei Paulo Delgado, que propõe a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros modelos de atenção à saúde mental. Em 2001, é sancionada a Lei n° 10.216, regulamentando a proibição de construção de novos hospitais psiquiátricos no Brasil. Estabelece também que os tratamentos devem ser de base comunitária e territorial, onde deverá ser trabalhado a reinserção do sujeito em sua comunidade. A internação passa a ser a última alternativa, acionada somente quando as possibilidades de atendimento fora dos espaços hospitalares se mostrarem insuficientes. Desta forma fica claro que a Reforma Psiquiátrica e os novos modos de cuidado não negligenciam a necessidade de internação do usuário, desde que essa ocorra em Hospitais Gerais.
Trata-se de uma nova política de saúde mental que não objetiva o aperfeiçoamento do hospital psiquiátrico e/ou do ambulatório, e sim a criação de novas formas de cuidado onde a saúde seja sustentada na comunidade e nos espaços em que cada pessoa vive, junto aos amigos, conhecidos, familiares, amores, trabalhos. Para possibilitar esta aproximação com a comunidade foram criadas redes de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Residenciais Terapêuticos, Serviços de Geração de Renda, Centros de Convivência e outros, com o objetivo de articular a criação de uma rede de atenção e cuidado.
Em 1987, com o II Congresso dos Trabalhadores em Saúde Mental, realizado em Bauru, é construído o lema “por uma sociedade sem manicômios”, onde nasce o Movimento da Luta Antimanicomial (MLA).
O MLA constitui-se como um movimento social de crítica às instituições que propõem e demarcam suas verdades como modos de vida a uma sociedade, assim como retoma a crítica à psiquiatria, e coloca o hospital psiquiátrico como símbolo de uma sociedade que exclui a diferença e rejeita aqueles que não são aceitáveis.
Isso é importante porque ressignifica o que se entende por manicômio, no qual não diz respeito hoje unicamente à instituição hospital psiquiátrico, mas se estende ao funcionamento social que dá conta deste tipo de instituição, assim como ao afastamento das diferenças quando elas se apresentam. Essas instituições funcionam a partir de dispositivos de controle que constituem uma cultura manicomial, perpassando não apenas o hospital psiquiátrico mas também as outras instituições que dão existência a nossa sociedade como escolas, fábricas, presídios, etc.
No município de Novo Hamburgo, vemos a luta antimanicomial ser levada à frente durante mais de duas décadas, durante as quais já se construíram alguns serviços de saúde mental e discussões sobre a temática em distintas frentes sociais. Pode-se dizer que em Novo Hamburgo, em seu processo de pensar a saúde, novas formas de relação com a loucura estão se construindo, campos de saberes e práticas estão em processos de metamorfose.

2009/5/13 Juliana Cordeiro Krug e equipe do CAPS