quarta-feira, 10 de junho de 2009

PAPO DE CULTURA - Ione Jaeger


E é no palco da vida
que às vezes me faço atriz
rio da poesia sofrida
choro num verso feliz

(Ione)




PENA DE TALIÃO




– Patroa, a senhora soube o que aconteceu com os Bonfortti?
– Hum! O quê?
–Todo o mundo está sabendo.
– Fala, Militão!
Fato propalado na vizinhança num tempo que as crianças e donzelas não deviam escutar. Falava-se à boca-miúda entre os adultos, pelos cantos, não se esquecendo de colocar a mão côncava ao redor da boca. As exclamações vazavam;
– Credo! Virgem! Ave Maria! Minha Mãe do Céu!...
Eu era criança, 12 anos, mas tomei conhecimento do caso. Minha mãe, com a naturalidade que lhe era peculiar, falou tudo com detalhes para a filharada, não se descuidando de fazer comentários de valores morais e explicando algumas dúvidas e perguntas.
Doutor Juventino Bonfortti, dono de grande fazenda nas redondezas, era pai de três filhos: dois rapazes de maior idade e Maria Santa, a princesinha da casa. Pais, irmãos, avó e a velha ama-de-leite – amamentou dona Efigênia, esposa de Juventino, e seus cinco irmãos – mimavam a mocinha de dezessete anos. Família religiosa, benfeitora das obras pias da paróquia e caridosa com todo aquele que viesse à porta de sua casa pedir esmolas e donativos. Ninguém saía de mãos abanando.
Benta, a ama de leite, notou que a menina andava diferente. Sorumbática, sempre nos cantos. Encontrou-a chorando no quarto quando, numa noite antes de dormir, foi levar-lhe leite morno adoçado com açúcar mascavo. As bochechas de róseo marfim pareciam desbotadas, o brilho das pupilas azuis - opacos. Nada falou com receios de assustar o resto da família. A moça estudava muito e comia que nem passarinho. Beliscava. Pensou: nessa idade poderia pegar uma tuberculose... E foi correndo até a edícula, ajoelhando-se, penitenciou-se pelo pensamento pecaminoso.
Naquela manhã, Maria Santa acordou antes das seis com ânsias de vômitos. Foi um alvoroço. Todos da casa saíram dos seus aposentos para socorrê-la. E davam palpites:
– Comeu ambrosia quente!
– Comeu jaca mole e bebeu leite em seguida.
– Essa menina anda se alimentando muito mal. Juro que foi dormir de barriga vazia...
Quanto mais o pessoal falava, mais a menina se agoniava sem conseguir alívio.Desmaiou. Imediatamente foram buscar o doutor Freitas. Nunca a casa do médico esteve tão longe.
Examinou de relance a enferma. Solicitou ficar a sós com a doentinha que só chorava e não dizia uma única palavra. Freitas teve uma conversa reservada com os pais da menina. A mãe deu um sofrido grito:
– Nãããão! Não, pode! Culminando com síncope.
– Freitas, o amigo tem certeza? Comentou o pai, incrédulo, numa atitude de passividade nunca vista no Doutor Juventino Bonfortti.
– Meu caro Bonfortti, a Maria Santa não respondeu uma única pergunta de práxis e não permitiu que tocasse nela nem mesmo para ver pressão, ou pulso. Chorava todo o tempo, um pranto sentido e escondia o rosto no travesseiro...
– Ela não tem namorado, vive para os estudos, para o piano. Não sai sozinha. A Efigênia e eu, com o apoio dos irmãos, estamos programando um baile no aniversário de 18 anos. Convidaremos alguns rapazes, as colegas de aula, amigos. Aos irmãos coube contratar os melhores músicos das redondezas.
O grande evento dançante aconteceria no último dia do mês da primavera. Estávamos em meados de fevereiro. Depois de dolorosa confabulação com os familiares, os mais próximos, a mãe e a avó foram ter com a adolescente. Extirparam a verdade da boca da vítima com muita dificuldade, lágrimas, jaculatórias, invocações aos santos e água benta.
A avó, no final da reunião, se dirigindo aos demais parentes que aguardavam na sala de estar, repetia entre soluços abafados:
– É uma santa! Não só no nome. É verdadeira santa para agüentar calada este tormento durante mais de dois meses. Pobrezinha!
Silêncio amargurado tomou conta da grande casa da fazenda. Na hora das refeições um clima soturno reinava no ambiente. Falava-se o estrito necessário. Nada mais. Maria Santa, com a assistência diária do velho e santo padre da cidadezinha, aos poucos vinha se livrando de uma apática mudez. A mãe com o terço bento. vindo do Santuário de Fátima – Cova da Iria, em Portugal – andava cabisbaixa caminhando que nem alma penada. Envelheceu dez anos, ou mais, naqueles poucos dias. Não se alimentava. Era de dar pena. A avó, corajosa mulher de engenho, procurava ser mais forte que o nome herdado do falecido marido, dirigia as tarefas domésticas. A octogenária Benta se homiziou, se assim podemos dizer, diuturnamente, na capela da fazenda, dedilhando o antigo rosário confeccionado com contas lágrimas-de-nossa-senhora. Colocava à misericórdia divina o martírio que estavam vivendo, rogando forças para agüentar o pesado fardo e, também, conhecendo-a, juro que depositava ao juízo do Pai do Céu o perdão ao malfeitor.
Como pôde um único homem desmoronar uma família inteira?
Juventino Bonfortti, assim como os filhos – João de Deus e Francisco de Assis – nada falavam sobre o acontecido. Isto é, mas na surdina tramavam um castigo para o agressor. Sentença dada, passaram para a execução.
Num cair da tarde, tempo quente de estio, sol vermelho no horizonte, os três varões da família ultrajada saíram à caça do criminoso. Não foi difícil encontrá-lo. Não reagiu. Embarcou na caminhonete dos Bonfortti sem perguntar o porquê.
Já era noite fechada quando chegaram ao destino – um capuão lá nos fins das terras dos herdeiros do clã dos Bonfortti. Terras de se perder de vista, desde o tempo dos escravos. Pararam ao lado da choupana, totalmente erguida de palha, com pequena abertura por onde adentraram os quatro homens. No interior estava uma mesa de madeira de lei com os pés cimentados no chão e uma gaveta, apresentando uma fenda larga na abertura e fechadura com chaves. A banqueta tosca diante da mesa compunha o cenário. João de Deus, o morgado, acadêmico de Direito, ordenou:
– Sente-se, ó besta do apocalipse! Abaixe as calças!
O mau-caráter reclamava!
– Qui qui eu fiz?
O chefe da família ultrajada nada falava, mas os irmãos de Maria Santa, não eram complacentes. Francisco de Assis, ferido, acalmou-o:
– Animal! Nem merece ser chamado de animal. Pior que um irracional, vê-se que lhe falta, deveras, consciência. Tudo que você tinha que falar, já falou: as ameaças à sua presa - sem direito e capacidade para defender-se.
– Por amor de Deus, não me mate! Tenho mulher e filhos!
O irmão mais velho continuou:
– Agora, ó tinhoso, lembra de Deus? Você não sabe quem é Deus, pois se soubesse não mataria a ingenuidade, a pureza, de uma menina indefesa. Agora se lembra que tem mulher e filhos! Você pede que lhe poupemos a vida, mas jurou de morte a família da moça caso ela falasse para alguém! Você não merece viver e, muito menos, morrer... por nossas mãos.
– Vamos, abaixe as calças. Coloque para fora sua arma de maldades!
– Muito bem! Adiante! Ponha seu troço dentro da gaveta, ajeite no lado maior da abertura. Chaveie! Duas voltas na chave!
A fera acuada derramava copiosas lágrimas de medo:
– Por todos os Santos, não me maltrate!
Os três, Juventino, João de Deus e Francisco de Assis, impassíveis davam continuidade ao castigo. O pai, homem na casa dos quarenta, sólida formação cristã, sentindo-se um verdadeiro algoz, não se perdoava. Lembrando-se, porém, das torturas que passou a filha, o sofrimento da esposa, não conseguiu deter o castigo ao homem, invasor do sagrado recinto do seu lar. E o jovem acadêmico de advocacia dava continuidade ao castigo:
– Estamos indo embora, cabe a você, só a você, decidir...
João de Deus pôs a chave da gaveta pendurada no galho seco de um arbusto ressequido próximo à porta da choupana e no lugar deixou uma adaga afiadíssima, avisando para o miserável que soluçava implorando pela sua sorte. O pai e os irmãos da vítima do degenerado – de nome Venâncio – ao retirar-se do local um dos rapazes avisou:
– Está vendo isto aqui, mostrando um isqueiro, três minutos depois que nos afastarmos, atearemos fogo numa das pontas da cabana. Boa sorte!
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No final da narrativa, uma voz de criança perguntou:
– Mamãe, por que você falou em pena de talião?



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IONE JAEGER – 28/03/09

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