sexta-feira, 3 de julho de 2009

PAPO DE CULTURA - Ione Jaeger




FIZ TUDO QUE PUDE

“Fiz tudo que pude”.
Foram estas suas últimas palavras ao chegar em casa naquela noite fatídica. A família estava toda reunida e assistia à novela das oito em sua última parte. Ele entrou às pressas, pálido, ofegante e com a respiração semi-presa conseguiu balbuciar, “fiz tudo que pude...” e imediatamente caiu pesadamente contra o piso de parque. Estava morto.

Gritos, correrias, desespero, “que aconteceu? Fala comigo”. Água, água com açúcar, pano molhado, pelo amor de Deus, depressa. Não adiantava mais nada. Estava consumado. Somente suas últimas palavras ficaram no ar.

A capela estava lotada. O velório transcorria sob o espanto de todos que não entendiam morte tão repentina. Homem novo, saudável. Extremamente bom. Grande chefe de família. No ar parava um silêncio de indignação que só era interrompido por choros, ora velados, ora convulsivos. Para a viúva e os filhos havia um som no ar em forma de palavras que se repetia continuamente – “fiz tudo que pude, fiz tudo que pude”. As condolências se sucediam:
– Meus pesamos, comadre.
– Obrigada!
– Foi assim tão de repente?
– Foi de uma hora para a outra. Um minuto. Foi horrível.
– Ele não disse nada sobre o que estava sentindo antes de morrer?
– Ele tentou. Começou dizendo “fiz tudo o que pude...” e não conseguiu terminar.
– Estranho. O que teria ele para dizer?
– Não sei, comadre. Já pensei tanta coisa. Não quero nem lembrar.

Diálogos como este se repetiam para cada parente ou amigo que trazia seus sentimentos. A viúva pensava nas últimas palavras do falecido e conjeturava – “talvez ele quisesse ter dito, fiz tudo para fazê-la feliz”. Afinal era sua última oportunidade para dizê-lo. Ou quem sabe, “para lhe dar tudo de bom”. Ou quem sabe – não queria pensar naquilo, mas não podia evitar – “fiz tudo o que pude para esconder que tenho outra, mas não é mais possível”. Mil idéias lhe passavam pela cabeça e o que mais lhe doía, além da perda de seu amado, é que nunca saberia o final daquela frase que, por certo, lhe perseguiria para o resto da vida.

O filho de 17 anos, mais velho dos três, olhava o pai deitado ali, inerte, rígido, sem aquele seu permanente sorriso afetuoso. “O que tu querias dizer com aquilo, papai? Por acaso estarias te referindo à moto que há tempo venho te pedindo? Só agora compreendo como devo ter te preocupado com tal pedido. Era muito para o teu orçamento. Perdoa-me, papai. Sei que fizeste todo o possível.”

A filha de 14 anos não parava de chorar e de questionar se aquela “fiz tudo que pude “ não seria referente a sua festa de 15 anos que ela vinha insistindo tanto. “Papai querido, não era tão importante assim. Tu tinhas razão. Festa é só para encher a barriga dos outros e ainda saírem falando”.

O caçulinha de 10 anos via sua viagem a Disney totalmente perdida. Ele sabia que papai faria todo o possível para que ele realizasse seu sonho.

Durante o velório não se limitava tanto de seu mal súbito como se falava de suas últimas palavras. Essas mesmas palavras foram comentadas semanas a fio por seus entes queridos. A família viveu anos ouvindo e repetindo aquela derradeira e inacabada frase. Visitavam centros espíritas mas encontravam muitas divergências entre um centro e outro. Seguidamente iam ao cemitério e ficavam um longo tempo postado diante do túmulo tentando encontrar uma luz. Na lápide “ele fez tudo o que pode” não havendo remédio, levaram a dúvida consigo o resto de suas vidas.
Muitos anos depois a viúva morreu. Sua alma curiosa saiu em busca da alma do esposo até encontrá-lo sentado numa pedra lendo um jornal.

Afoita, foi logo lhe perguntando: “Afinal, o que tu estavas tentando dizer?”
Calmamente ele levantou os olhos do jornal e disse:
– Nada mais querida. Apenas quis dizer que fiz tudo o que pude para chegar em casa a tempo de ver a novela.”




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Vilson Martins, CONFRARIA DE CONTOS, Ed Alcance – POA, 1986. pág 75

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