sexta-feira, 21 de agosto de 2009

PAPO DE CULTURA - Ione Jaeger






PRIMAVERA



Toda vez que ouço a palavra primavera remonto-me a 1944, mistura de emoções toma conta das minhas lembranças. Morava em Cruz das Almas, estava no quarto ano da professora Amenália – uma escola reunida onde vinte alunos, de 1º ao 5º ano, freqüentavam a mesma sala.
Aproximando-se a entrada da primavera, Amenália motivava a turma para festejar a estação das flores. Cantávamos sobre o tema todos os dias no final da aula. Estava programada uma hora de arte – danças, teatrinhos, poesias – para o dia 21 de setembro, uma quinta-feira, no pátio escola tendo por cenário árvores e céu azul.
Deu-me a professora, a poesia A PRIMAVERA, de Guerra Junqueiro para declamar...
Meu Deus do Céu! Tentei cair fora de todos os jeitos. Nada falei em casa, porém um encontro casual na faculdade, Amenália dedou-me:
– Doutor Rocha, a Ione vai recitar poesia na hora cívica...
Meu pai, diante da comunidade doméstica – minha mãe, meus irmãos – todos sentados à mesa jantando, a cozinheira servindo, escancarou o conflito que me abatia:
– Vais declamar poesia na festinha da escola, Ione?
Que bomba! Época da Guerra, canhões troavam na Europa e uma granada estourou na minha timidez. O que respondi apenas meus pulmões e o diafragma ouviram. Baixei os olhos e engoli um sim. Meu pai continuou:
– Depois do jantar, mostra-me a poesia!
Pensei que ele ia esquecer, que nada! Chamou-me e retornou a sentença. Obedeci, entreguei-lhe a folha com a minha desdita:



A PRIMAVERA


A primavera opulenta
Rica de cantos e cores,
Palpita, anseia, rebenta
Em cataclismos de flores.

Polvilha de ouro e de prata
O campo, o bosque, o vergel;
Aos seus lábios de escarlata
Vai buscar a abelha o mel.

Enroscam-se aos troncos nus
As verdes cobras da hera,
Radiosos vinhos de luz
Cintilam pela atmosfera.


Diariamente, até o dia da festa, meu pai chamava-me à sua presença e, junto comigo, decorávamos A Primavera. Tinha imponente paciência, não brigava, mas pedia de minuto em minuto a minha atenção. Explicou-me o significado das palavras: opulenta, cataclismos, vergel, cintilam. Perguntou-me se eu não achava a poesia bonita...

Só que ele não sabia – eu nada tinha contra a poesia, a primavera, Guerra Junqueiro (nem sabia quem era). Nada contra a opulenta, os cataclismos, o vergel, muito menos nos que cintilam. Minha angústia era declamar na frente de um público, subida numa caixa - palco improvisado, o meu cadafalso.

Faltava menos de uma semana para o evento. Eu vivendo o terror de um conflito: de um lado, querendo participar do momento festivo da chegada da primavera, recitar a poesia; e do outro lado, tremendo e temendo subir no palco, violentando a timidez idiota, atrevida, que agora voltou para fazer-me companhia no inverno da vida, cobrar a dívida da infância.

Rezei tanto, os santos tiveram compaixão de mim e, no dia 21 choveu muito, não houve a festinha...


Ione Jaeger
Novo Hamburgo, 16 de setembro de 2007

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