domingo, 13 de setembro de 2009

PAPO DE CULTURA - Ione Jaeger


A ALMA QUE ASSOMBROU
O PAI DE LORI


Ione Jaeger





Havia a palmatória. Seu pai vai lhe bater! Eu só apanhei uma vez. Contei doze ovos. Toninho venderia para a dona Safira, mulher de doutor Ivan, colega de meu pai. Ela queria cedida uma dúzia. Toninho não sabia o que era uma dúzia. Ofereci meus préstimos, contei os doze. Levei quatro bolos na sola dos pés. Dois em cada. Hum! Nem doeu! Não devíamos vender ovos!

A palmatória era respeitada, era a nossa consciência, superego, disciplinava princípios morais. Marrom escura de madeira, cabo e uma parte circular com dez centímetros de diâmetro, espessura de trinta milímetros, apresentava no centro da parte redonda cinco furinhos dos quais nunca soube a finalidade. Dizia-se, em voz corrente, que colocado um piolho-da-cabeça num dos furos, ou em todos, quando usada se partiria ao meio. E a coça ficaria para outra ocasião. A distinta permanecia pendurada atrás da porta do quarto de costura. Minha mãe nunca fez uso:

– Ai, Seu Xinxa, eu não tenho força pra bater de palmatória!

Aliás, minha mãe beliscava, puxava os cabelos, xingava, porém não surrava. Faltava-lhe força. Possuía uma língua ferina que doía mais que pancada. A dor da surra passava antes da segunda arte. O que dona Zelinha dizia acompanhou-me a vida inteira – paradigmas de valores que moldaram e disciplinaram-me o caráter. O baterista da banda, digo, da palmatória era meu pai. Zé que o diga.

Um dia a palmatória sumiu. Alguém alforriou a peça educativa. Deve ter sido Zé, meu irmão falecido. Não estarei fazendo juízo temerário? Bolas! Ora, era o freguês mais assíduo da distinta. E agora, quem o defenderá desta acusação? Se não foi ele quem deu sumiço, peço desculpas.

Pensando com maior benevolência, Doutor Rocha, meu pai, apelou poucas vezes para aquele instrumento disciplinar. Em parceria com Dona Zelinha lançava mãos de apelos mais eficazes e não tão violentos: o olho de Deus – vigia de atos reprováveis – e "a alma que assombrou o pai de Lori".

Alguém deve estar curioso para saber quem é Lori, quem é o Pai de Lori e quem é a Alma. Acredito que não encontrarão respostas em qualquer literatura. Os três são personagens do folclore doméstico de minha família. Dois deles, reais – Lori e o Pai. O outro elemento do triângulo, a Alma. A Alma é a alma!

Lori – freqüentador lá de casa, um cara jovem, alegre, brincalhão, tocava piano e contava estórias. Chegava por volta das quatorze horas, nem respirava e já se dirigia para o piano. Tocava bem, mas fazia tantas firulas nas teclas que o sol teve dó das demais companheiras e pediu socorro. O piano foi afinado.

Dias depois Lori apareceu e, estando o instrumento chaveado, solicitou:

– Dona Zélia, cadê a chave do piano!

– Oscar guardou. Não sei onde!

Therezinha, minha irmã mais velha, menina de doze anos, quis mostrar serviço.

– Eu sei. Tá na gav...

Recebeu um beliscão no braço próximo ao ombro, que a fez sorrir amarelo querendo chorar. Saindo o pianista, dona Zélia passou-lhe um dos seus sermões.

O Pai de Lori, o assombrado – senhor sério, taciturno, funcionário da viação férrea, desempenhava funções numa cidade do sertão da Bahia. Trabalhava sozinho no velho barracão tendo aos seus cuidados sinalizar o tráfego noturno dos trens. Tirava uns cochilos leves, de vez em quando. Numa dessas inocentes queimadas de pestana escutou um psiu. Ainda sonolento falou consigo:

– Oba! Não estou sozinho! Que bom!

Para quem trabalha na madrugada, sem companhia, dá graças a Deus quando aparece um vivalma para um bom bate-papo. Os assuntos mais corriqueiros nesses encontros são casos de curupira, mula-sem-cabeça, assombrações... O Pai de Lori abriu os olhos, ergueu o lampião direcionando a claridade para a janela, limpou as vistas com o dorso das mãos e correu. Correu mais veloz que o trem que se aproximava. Recobrou-se do que viu duas horas depois de chegar à estação mais próxima, distante quinze léguas.

A Alma – entidade fantasmagórica dos casos de assombração, espiava pela janela sorrindo, desapareceu.

Na imaginação, um retrato compus da criatura. Não sei se falado por alguém ou criação própria. Mulher alta, magra, cabelos bem pretos, lisos, escorridos até a cintura, desdentada, nariz adunco, queixo de sovela, dedos afilados, unhas compridas. Contavam que a tal senhora deu um amplo sorriso para o homem e saiu em direção ao cemitério.

Num dia do ano de 1942, meu pai comprou uma lanterna de pilha para auxiliar a iluminação do ir e vir dentro de casa. Vivíamos em Salvador no black-out do tempo da guerra. Meu pai chegou pelas dezoito horas, escurecia. Éramos seis irmãos (depois nasceram mais quatro) numa escala de quatorze a dois anos de idade. Todos correram para ver a novidade. Feitas as demonstrações foi recomendado que ninguém mexesse e a colocou numa das cinco gavetas do balcão da sala de jantar. Momentos após, quando mais ninguém estava na sala, fui, pé ante pé, procurar a preciosidade. Ei-la, na terceira gaveta! As minhas mãos ansiosas, tremelicando com medo de que aparecesse alguém e... deixo-a cair. Ufa! Não quebrou! Guardei novamente, bem guardada, sem marcas da queda e do meu susto. Logo seria a hora da janta, da ladainha de Nossa Senhora (agora lábios meus, dizei e anuncia os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus...), da corrida aos banheiros para escovação dos dentes, de guardar os brinquedos que estavam fora do lugar, do trocar de roupa para dormir, de subir a escada – doze degraus em direção aos dormitórios no sótão.

Meu pai buscou a lanterna. Sob a luz fraca de um lampião de querosene, tentava acender a lâmpada. Nada! Nas faces dos presentes a expectativa. Nada! Silêncio. Silêncio. Um silêncio atroz me culpando. Doutor Oscar chamou os filhos. Foram dispensados: Dora, cinco e Carlinhos dois anos de idade. Os demais, maiores de sete anos, compareceram ao tribunal de inquisição:

– Foi você? Jura? Quer ver a alma que assombrou o pai de Lori?

– Não fui eu! Eu juro.

Therezinha, Betty, José, Toninho disseram sim e eu também. Prestei falso juramento. Cruzei os dedos, escondidos nas costas, mas...

Fui dormir. Antes da meia-noite acordei com Betty esbravejando, eu deitada na sua cama, no sentido inverso ao seu, agarrada, tentando esconder meu rosto nas solas dos seus pés. Na janela me olhando estava a Alma que assombrou o Pai de Lori. Sorria tirando sarro do meu falso juramento e covardia.

Nunca mais jurei invocando o nome daquela senhora. Preferia os carinhos da palmatória e os sermões rigorosos de Dona Zélia...

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Do livro em preparo - CONVERSA MOLE PARA BOI DORMIR - Contos e Crônicas

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