sábado, 12 de setembro de 2009

DIRETO DO RIO DE JANEIRO - NELSON TANGERINI


BRASIL DOS REIS, O ÚLTIMO ROMÂNTICO






Emmanuel de Macedo Soares




Eles eram jovens, idealistas e boêmios. Vivam num tempo em que o romantismo dominava tudo, ganhavam honestamente o pão de cada dia nos mais diversos ofícios, mas o trabalho era apenas pretexto para sobreviver. Sua vida, na realidade, estava na reunião noturna, na discussão literária em tornos das mesas de café. Gráficos, artistas, jornalistas, músicos, chegada a noite eram todos poetas. Tertúlias e saraus multiplicados pelo dia a dia deram em muitos livros que hoje são raridades bibliográficas. Muitos sonetos satíricos se compuseram e na roda do tempo se misturaram nomes como Anísio Monteiro, Luís Pistarini, Max dos Vasconcelos, Mazzini Rubano, Américo Rodrigues, Armando Gonçalves, Agripino Grieco, Olabo Bastos, Olavo Guerra, Luciano Gualberto, Luiz Leitão, Nestor Tangerini, Gomes Filho, Kléber Sá Carvalho, Bento Barbosa, Lourenço Araújo, Benjamim Costa, Roberto Mesquita, Lefort Varon, Apolo Martins, José Mayrink, René Descartes de Medeiros, Ângelo Eliseu e tantos mais. Para a maioria, a vida foi muito curta. Um só está vivo, e bate as ruas de Angra cheio de recordações e imagens: Brasil dos Reis, o último romântico1.



Setenta e nove anos de jornalismo e poesia - Brasil dos Reis começou a escrever com 14 - passeiam diariamente pelas ruas de Angra dos Reis, no corpo magro e empinado de seu poeta, Benedito Angrense Brasil dos Reis Vargas. Quando ele nasceu, em 1895, o Romantismo apenas começava a declinar, com o ingresso do Realismo no panorama literário nacional, forçando as portas pela obra de outro angrense, Raul Pompéia. Do choque escolástico nascia uma geração boêmia, rendendo culto à poesia e ao sentimento. O mundo era menor e menos atribulado; a vida mais fácil, o jornal uma aventura que convocava os jovens idealistas mal eles começavam a crescer.



Brasil vem dessa época, e muito cedo deixou os bancos da escola do professor Estevão Suzano Fasciotti, o mesmo com que estudaram Arnaldo Nunes e Hermano Brunner, poetas também. Mal completou o curso primário, mas nem por isso descuidou da cultura. Continuou a aprender sozinho, lendo tudo, principalmente poesia. Nunca deixei de ler um poeta que me caísse nas mãos. Quando entrou na casa dos 14 anos Brasil dos Reis começou a escrever, primeiro no Sul Fluminense, depois no Recreio da Tarde, jornais editados em Angra dos Reis. Doenças recentes não o afastaram da literatura, e principalmente do jornalismo, pois até hoje mantém um periódico, O Litoral, a que se refere com bom humor: Cai aqui, cai ali, quando dizem que Angra dos Reis não tem imprensa O Litoral sai para desmentir.



Em 1917 Brasil dos Reis foi para Paraty, onde fundou seu primeiro jornal, O Prélio, de curta existência. Paraty tinha boa tradição na imprensa, pois ali circulara durante muitos anos, desde o fim do século XIX, o pequeno O Farol. Entretanto, manter órgãos de imprensa no interior era ainda um risco e uma aventura. O Prélio desapareceu, mas Brasil não desistiu. Por volta de 1930 voltou a Paraty para dirigir A Verdade. Por motivos políticos, seu nome não constou do expediente. Brasil não foi muito chegado à política e não morreu de amores pela Revolução de Vargas. Depois de consumada aqui, fiquei a favor. E em 1932 sentei praça na Coluna Gweyer, que combateu os constitucionalistas de São Paulo. Lourenço Araújo historiou essa epopéia no livro A Coluna Gweyer no Túnel.



Um dia Brasil dos Reis se transferiu para Niterói. Veio ser revisor e tipógrafo em O Fluminense, onde conheceu Eurípides Ribeiro, Roberto Mesquita, Kleber Sá Carvalho, Manuel de Carvalho, João Carvalhais e Hernani Ramirez da Silva, todos boêmios, escritores, românticos, poetas. E foi ficando, até perto de 1937, quando atravessou a baía e começou a trabalhar na Escola Superior de Comércio e na Gazeta de Notícias. Por esse tempo espalhou sua poesia em tudo quanto foi jornal que apareceu. Em 1946 o velho João Galindo convocou-o de volta a Angra dos Reis para fazer O Sul Fluminense. Brasil teve de se desdobrar, pois começou a editar também O Litoral e continuava trabalhando na Gazeta de Notícias. Passava semana em Angra e semana no Rio. O resultado foi uma temporada de quase um ano no Sanatório Azevedo Lima, em Niterói, onde venceu a guerra contra a tuberculose: Desmoralizei o bacilo de Koch. E a maioria de meus filhos, nascidos pós-moléstia, goza de excelente saúde.



Daí por diante Brasil encastelou-se em Angra, disposto a não sair mais. Compromissou-se com a pesquisa histórica e literária, acumulando um acervo riquíssimo. Guarda dos poetas da terra, como Áurea Pires e Plácido Junior, as melhores recordações. Andou descobrindo coisas, como as peripécias de Fagundes Varela em Angra, e muita gente se deslocou para lá, a fim de colher subsídios e informações sobre a cidade e sua gente. Brasil nunca se negou a dá-las. Em vários livros encontram-se citadas suas colaborações, por um ou outro motivo. Dos tempos de imprensa em Niterói guardou recordações carinhosas. Das amizades maiores, cita Hernani Ramirez, chefe de oficina de O Fluminense, que morreu trabalhando, e João Carvalhais, o versátil Juca Trombone, dono de uma pena satírica que tanto escrevia como desenhava, e que deixou um livro, Trombonadas, hoje impossível de encontrar, mesmo nas bibliotecas mais abastecidas.



Desse tempo foi também Eurípides Ribeiro, que está vivo até hoje2. Mas Eurípides não tinha nada de boêmio. Conheci-o no O Fluminense, quando era revisor e ele redator. Não conheci seu irmão, Genserico Ribeiro, mas tive grande estima pela filha deste, Utilde Ribeiro Jardim, que morreu muito moça. Utilde recitava maravilhosamente e muitas vezes disse versos meus, em festas inesquecíveis organizadas pelo maestro Ernani Bastos.



O grande centro da boemia niteroiense era o Café Paris, onde, no dizer de Brasil dos Reis, existiram várias rodas literárias. De seus frequentadores, só um, Bento Augusto Barbosa, teve paciência para recolher subsídios históricos que enfeixou em livro inédito - No tempo do Café Paris - hoje em poder de seus familiares. Um a um, Bento retratou em deliciosas páginas. Registrou desde o nome dos garçons até as produções literárias que ali nasciam e muitas vezes morriam, algumas impublicáveis, como os mordazes epitáfios que tiveram sua época; outras menos carregadas, como os sonetos de perfil feitos a seis mãos por Lili Leitão, Nestor Tangerini e Gomes Filho.



O Café e Restaurante Paris surgiu em 1898 na rua Visconde do Rio Branco [nº 417, lembra Brasil dos Reis], no trecho em que se abriu a avenida Amaral Peixoto, correspondendo mais ou menos ao atual edifício da Companhia Brasileira de Energia Elétrica. Fundado pelo português Antônio Benedito Meireles, em 1923 passaria aos irmãos João e Silvano Alves, que o exploraram nos dez anos seguintes. Em torno de suas democráticas mesas - escreveu Bento Barbosa - costumavam sentar-se poetas e prosadores para, sobre a pressão inspiradora dos espíritos dos brancos Falernos, não importados, trocarem idéias, declamarem as poesias que compunham e escreverem trocas, quadras, sátiras e sonetos.



A bem dizer, duas rodas fizeram época no Café Paris. A primeira a partir de 1912, com Max dos Vasconcelos, Luís Pistarini, o pintor Gutman Bicho [cunhado de Agripino Griecco], Ricardo Barbosa, José Nazareth, Benjamim Costa, Américo Belas, o poeta e maestro Benedito Montes [que se assinava B. dos Alpes], Rui Gonçalves e outros que Brasil dos Reis vai tirando da memória: Anísio Monteiro, Luciano Gualberto [que morreu como diretor da Faculdade de Medicina de São Paulo e foi reitor da USP], Armando Gonçalves, Olavo Guerra, Américo Rodrigues, Calixto Cordeiro.



Alguns não cheguei a conhecer, como Max dos Vasconcelos, que morreu muito antes de minha chegada ao Rio. Com outros convivi, como Benedito Montes, de quem se diz que introduziu a valsa-lenta na música brasileira, mas não era comensal de todo dia no Café Paris. Da minha roda foram Olavo Bastos, Lili Leitão, Gomes Filho, René Descartes de Medeiros, Nestor Tangerini - que era o gramático do grupo - Roberto Mesquita, Kleber Sá Carvalho, Hernani Ramirez da Silva, Carlos Francisco da Silva, Apolo Martins, Bento Barbosa, Renato Lacerda [o Cabeleira] e o pintor Carolo, que era do Rio Grande do Sul mas morava em Niterói. Às vezes apareciam Lourenço Araújo, Paula Achiles e L. Varon, que se chamava por inteiro Leopoldo Raimundo Eugênio Lefort Varon. Este surgia de vez em quando, tomava um drink e ia embora.



De cada um Brasil dos Reis guardou recordações diferentes, Eu acho que na roda do Café Paris houve diversos tipos de valores. Havia os bons, os melhores, os apenas razoáveis. Os figurões da roda, aqueles cujas opiniões eram acatadas pelo resto, foram Olavo Bastos, Gomes Filho, René Descartes de Medeiros, Nestor Tangerini e Roberto Mesquita. Olavo Bastos figurava como o coordenador, o chefe, o mentor principal. Quando surgiu a Academia Fluminense de Letras ele figurou entre seus fundadores, apesar das rivalidades entre aquela entidade e a roda do Café Paris, mas não levou ninguém para lá. E quando ele morreu o pessoal da roda começou a se dispersar. Na verdade, Olavo era o papa do Café Paris.



Rubens Falcão foi injusto com ele, quando escreveu na sua Antologia de Poetas Fluminenses que pedia roupa emprestada. Olavo se vestia impecavelmente: fraque, calça listrada, gravata plastron, polainas, chapéu de abas largas e um bengalão. Um dia houve um desastre de bonde na alameda São Boaventura e a bengala do Olavo foi parar entre os trilhos. Ficou toda retorcida, mas ele não se importou e continuou andando com ela assim mesmo. Só uma vez Olavo pediu roupa emprestada, e foi a seu irmão, o Dica, bom caricaturista, como caricaturista era outro de seus irmãos, o Chiquito3. Como o Dica era mais magro do que ele, Olavo teve de abrir a calça, na parte de trás, coberta pelo fraque. Quando ele se apresentou com essa roupa nova todos ficamos torcendo para que cometesse alguma distração, mas ele não se traiu: portou-se impecavelmente, sem se mexer um segundo.



Luís Leitão, o Lili, era o maior poeta de todos, no sentido satírico do termo. Improvisador insuperável, foi o caricaturista da roda, e caricaturista mordaz. Lançou a moda dos epitáfios, alguns impublicáveis, que Brasil dos Reis tem de cabeça. Um deles foi dedicado a Olavo Bastos, que era o que se chama de bom copo:





Quando morreu o Olavinho



os vermes - ai de quem morre!



com bafo de tanto vinho



ficaram todos de porre.





Lili morreu cinquentão, em Niterói. Boêmio até a última gota, entregava-se exageradamente ao álcool, de modo que muita coisa dele se perdeu. Publicou livros, onde se conservam seus melhores sonetos satíricos, como Vida apertada e Comidas brabas, este último inteiramente feito nas mesas do Café Paris. Os epitáfios de Lili acabaram pegando. Um dia ele fez um, meio atravessado, para o Benjamim Costa, que prontamente reagiu e respondeu com este:





Aqui jaz Lili Leitão



morreu pobre, sem dinheiro.



Disse um verme, e com razão:



a cova não é chiqueiro!





Nas rodas posteriores, os epitáfios continuaram em moda. Um deles foi feito pelo Amadeu de Beaurepaire-Rohan para Ângelo Eliseu, excelente cronista, mas orador que nunca parava de falar:





Quando morreu o Eliseu



os vermes, em reunião,



disseram: primeiro a língua



para evitar falação.





Depois dos epitáfios, Lili inventou os sonetos de perfil, em que sempre um elemento da roda era retratado a seis mãos, pelo próprio Lili, pelo Tangerini e pelo Gomes Filho, saindo a peça assinada por L. T. G., iniciais dos autores. Brasil dos Reis foi uma das primeiras vítimas:





Se Deodoro soubesse que existias



nessa figura intensa de burguês,



certo te avassalava as dinastias



e não serias um Brasil dos Reis.





E Floriano também, por sua vez,



fiel à profecia de Isaías



por te julgar um coronel princês



mandava te prender por trinta dias.





E nunca mais nas mesas do Paris



num verso, enfim, de colaboração,



poderias meter o teu nariz.





E então, Brasil dos Reis ou das Rainhas



de rei tu descerias a barão



e a tua musa andava de gatinhas...





Na roda do Café Paris, Brasil insiste em dizer, todos foram poetas, uns mais, outros menos poetas. Benjamim Costa, que morreu em 1954, foi dos melhores. Poetou desde menino e publicou muitos livros: “Primeiras canções”, “Outono em folhas mortas”, “O meu Jordão”, “Miragem”, “Meu céu azul” e outros, alguns escritos nas mesas do Paris. Desses livros produzidos no próprio café, Brasil dos Reis se recorda de Ciclo do sol nascente, de Gomes Filho; Orações profanas, de Roberto Mesquita; Lugares comuns e Nini, dele próprio. Havia também aqueles que não deixaram livros publicados, como Renato Lacerda - o sem proposição, como fazia questão de se apresentar, para se distinguir do quase homônimo Renato de Lacerda, de quem não gostava.



O Renato sem proposição era das figuras mais populares de Niterói, onde toda a gente o conhecia como O Cabeleira. Quando Modestino Kanto foi contratado para fazer o busto de Araibóia que hoje se encontra diante da capela de São Lourenço dos Índios, foi quem serviu de modelo. Como poeta - ele mesmo dizia, lembra Brasil dos Reis - levava seis meses escrevendo um soneto e outros seis fazendo a propaganda dele.



Brasil se cansa e para de falar. O corpo leve, franzino, fino como cristal, desce placidamente as escadas do sobrado colonial do inseparável amigo Alípio Mendes, senhor de todos os segredos da história de Angra. Põe o chapéu na cabeça e sai vagarosamente pelas ruas empedradas de sua cidade. Lá fora aceita a última pergunta e então se nota que o espírito continua voltado para a saudade dos tempos do Paris. Brasil, e os amores? Os amores? Segundo Lili Leitão, o incorrigível,





Meus amores foram três



(por ventura ou por desgraça



a conta que o Diabo fez):



mulher, dinheiro e cachaça...4








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