sábado, 8 de agosto de 2009

PAPO DE CULTURA - Ione Jaeger








Para Oscar Rocha, Meu Pai

"Ó que saudades que eu tenho
da aurora da minha vida
da minha infância querida
que os anos não trazem mais"
(Casemiro de Abreu)



Abro a cortina. Uma visão amena, singela, descampa-se à minha frente.
Eis a infância!
Lá está meu pai, sentado, diante do tabuleiro de xadrez. Doutor Floriano pigarreia - xeque-mate! A ama Regina traz um cafezinho. Na bandeja, diáfanas xícaras de porcelana chinesa, tesouro da cristaleira de espelhos. Minha mãe à máquina de costura faz vestidos de babadinhos para as filhas. Minha mãe sempre ventruda. Doze gravidez em vinte anos de casada.
A casa de Cruz das Almas, um amplo quintal com três alas: jardim, horta e pomar. Nesta última está o galinheiro. As galinhas, alguns patos. Respeitável fila! Dora à frente, com uma folha do mamoeiro, é a porta-estandarte. Toninho é o corneteiro. Eu a tamborista. Alguns punhados de milho dentro da lata (de querozene) vazia e, em movimentos ora ascendentes, ora descendentes, marco o compasso da marcha: um dois, esquerda, direita. A pata marcha com elegância. Passo certo. A pata é de Carlinhos. Presente de madrinha Cotinha. A pata alça vôo. Cinqüenta metros de comprimento por três de altura. Passa por cima da casa. Foge da nossa perseguição. Não quer o tope que vamos colocar-lhe na cabeça.
A galinha pescoço pelado sumiu. Ninguém sabe, ninguém viu. Toninho a encontra. Ei-la, dezessete pintinhos recém descascados.
Do alto da goiabeira vemos José chegar da rua, correndo. Entra na despensa. Come a metade dos bolinhos de banana d'água. Sai de mansinho. Levamos a culpa.
Vendemos uma dúzia de ovos para dona Safira. Logo para ela, grande amiga! Apanhamos. Onde já se viu vender ovos? Todos os dias ela manda a empregada pedir que lhe ceda uns ovos e fica no não é nada. Apanho de palmatória na sola dos pés - meu castigo é maior do que o do Toninho. Quem fez a contagem fui eu. Ele ainda não aprendeu o que é uma dúzia. Queremos o produto da venda para as despesas com a festa da padroeira, do quintal - Nossa Senhora das Candeias.
Meganha! Meganha! É a galinha mexendo com a força policial - Toninho, Dora e eu. Corremos atrás da molecada. Corremos, corremos, montados nos cavalos de cabo de vassoura. Corremos de lá para cá e se vai a poedeira para dentro da fossa. Afoga-se. Ficamos desolados. Minha mãe sentencia: agora é tarde, inês é morta!
Vem o bloco carnavalesco com fantasias de papel crepom em pleno mês de julho - cantando, tamborilando, barulho. Meu pai grita: Deixem eu calcular! Com que imponência ele brada! Sentado à escrivaninha de jacarandá, preparando aulas ou corrigindo provas. Apelidamos o galo de Meu Pai. Meu Pai, que postura! Esbelto, nobre, cabeça levantada, crista hirta, dizia: cococoricó com elegância. A pedidos insistentes do doutor Ivan, trocamos Meu Pai por duas galinhas. Uma, a tuberculosa - sobe na mesa e come meio quilo da manteiga de garrafa.
Toninho amarra num arbusto a saracura encontrada no banhado. Fino barbante ata-lhe a patinha. A ave de estimação dá uma bicada na bunda de Carlinhos. Carlinhos fica brabo. Pega uma vara e vai para cima do bicho: eu mato, eu mato! Toninho ajoelhado: não mate, não mate meu bichinho!
Cair da tarde. Tudo calmo. Estou tranquila, pensativa, sentada na rede pendurada entre duas árvores, no quintal, frente da janela da cozinha. Uma catapulta chamada José ativa a rede arremessando o projétil. Vôo. Entro pela janela. Aterrisso de bojo sobre o fogão de pedra.
No oratório, toda a família ajoelhada diante do nicho de madeira. É sábado. Já jantamos. Rezamos o ofício de Nossa Senhora. Meus pais e os que já sabem ler, lêem. As palavras vão crescendo... ficando mágicas: agora lábios meus... não quero ler... ouvi Mãe de Deus ... os filhos estão lendo ... ide vós adiante ... meu coração bate forte... vaso insigne de devoção... tremo... sede de sabedoria... tenho medo de ler errado... rosa mística... estou ansiosa... consolação dos aflitos... Rainha da Paz... rogai por nós ... amém...
A casa está em rebuliço. Oba! Betty e Therezinha chegarão à noitinha do internato. Estão no ginásio. Férias. Arruma-se a casa, passa-se cera, varre-se o quintal. Faz-se doce de tomate e de jaca mole, em calda. Bolo de aipim. As duas trazem um repertório de fox-troit... the bell are sing, for me and my girl... A guerra troa na Europa.
Sábado, dia de feira livre. Festa. Quanto é a laranja cravo? Vinte por dez tons! O tostão ainda impera e o cruzeiro está com mais de um ano de vida. Conto as laranjas. O feirista se distrai. Surrupiamos uma.
A farinha é boa, freguês? Prova, freguesa! Ah, invejo o que o vendedor faz: lança um punhado de farinha em direção à boca, num rápido impulso com os dedos - o mínimo, o anular e o médio - vencendo um raio de, mais ou menos, quarenta centímetros, acertando o alvo. Tento fazer o mesmo, não acerto. A farinha em nuvem chega-me aos olhos.
Ó minha mãe, olhe aquele porquinho! É dez mi reis, madame! Leve, minha mãe, leve! Tão pequeninho. Pretinho, lustroso. Mas tem que ser Toninho quem o traz para casa no colo. Este bicho não vai se criar! Vai sim, meu pai! Toma café morno com leite e açúcar. De outro jeito, não aceita.
Pretinho brica conosco. Corre pela casa. Vara as salas de jantar e visitas, os seis quartos, o corredor, o oratório, a cozinha... É às vezes nosso filho. Vestimos-lhe nossa roupa.
Pretinho, vem meu pai! Corre da sala até o quintal. Leva na corrida o pote de barro com água de beber. A talha. O aguadeiro vem somente uma vez por semana, aos sábados. É segunda-feira. Que coisa! Lamenta chorosa a dona Zelinha.
Vou à venda de Lili, madrinha de crisma de Dora. Vou comprar uma copo de cachaça. Minha mãe vai fazer licor de jenipapo. No local, onde fica a pipa da aguardente, as abelhas tentam cheirar-me. Ai, que medo! Pousam nos meus cabelos, no ombro, beijam-me na face, nos lábios. Lili e o marido recomendam-me para ficar quietinha. Prendo, até, a respiração. Não vejo a hora de sair dali. No caminho de volta encosto a boca na beirada do copo. Geladinha, gostosa!...
Estou indo à casa de Amenália. Toninha me acompanha. Levamos um bilhete. Curiosa, resolvo ler o recado. Sentamos à sombra de um cajueiro à beira da estradinha. Leio, Toninho não sabe ler ainda. Dona Zélia pede a carne. Deus! Por que pede carne para a nossa professora?! Será que estamos pobres? Trazendo a carne, um pequeno pacote, formato quadrado, enrolado com grosso papel pardo e cordões garantindo a inviolabilidade. Abro o embrulho que me é confiado. Contém um livro - A Carne, de Júlio Ribeiro.
Vem a carroça do Maçu. Vamos fazer compras na loja no centro da cidadezinha. Meu pai e minha mãe vão juntos. Maçu, Maçu, eu vou no banco da frente! Vai, invejosa! Nós vamos no banco de trás. Você vai cheirando as bufas da égua... Como é mesmo o nome daquela égua? Delicada. Sim, Delicada é delicada. E vamos! Maçu nem escuta as nossas brigas. Pa-ca-tá! Pa-ca-tá! As rodas macias deslizam na estrada de chão batido.
Tudo ficando para trás!...
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Oscar Rocha, natural de Bagé/RS, nasceu no dia 7 de julho de 1898. Filho de Carlota e Virgilino Rocha. Estudou em Porto Alegre. Formado pela Escola Técnica Parobé, trabalhou inicialmente em profissões ligadas à sua formação, indo, mais ou menos, em 1920, trabalhar em Caxias, na Abramo Eberle & Cia. Foi jogador amador no Juventude de Caxias. Conheceu Licério Schreiner que o convidou para trabalhar e estudar no Rio de Janeiro. Em 1922, na Cidade Maravilhosa, jogou no América Foot-ball Clube (1922/1924 ?) e fez um curso na Escola Politénica do Rio. Saiu do Rio em missão de trabalho, no início de 1925, indo a algumas capitais do nordeste, implantando escolas técnicas. Chegou em Salvador nos primeiros dias de abril de 25. Trabalhou sendo Diretor interino da Escola de Aprendizes Artífices da Bahia (hoje Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia), gamou na jovem baianinha de 16 anos (10 anos menos que ele), Zélia Fraga dos Santos, casando-se a 28 de novembro do mesmo ano, sendo pai de 10 filhos: Therezinha Eva, Betty Mercês, José Acyr, Ione Maria, Sérgio Antônio, Dora Yeda, Carlos Eduardo, Gilka Norma, Célmi Leda e Oscar Júnior. Católico, diplomado em 1938 em Engenheiro Agrônomo, exerceu os cargos de Professor catedrático da Escola de Agricultura e Medicina Veterinária , Cruz das Almas, diretor da Escola Luiz Tarquínio de Salvador (SENAI), professor no SENAI de Novo Hamburgo, professor e visitador no Serviço Nacional de Aprendizagem industrial de Vitória, Espírito Santo. Ocupava na capital capixaba o cargo de Diretor do Fomento Agrícola do Estado do Espírito Santo. Faleceu em 14 de fevereiro de 1958, em Vitória.


Na presença de meu pai, em toda a minha vida, homenageio os pais de todos meus amigos no dia em que se festeja O DIA DOS PAIS.Ione

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