quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

PAPO DE CULTURA - Ione Jaeger


Ione Jaeger

DEVASSA







Domingo foram os mochinhos de madeira e a mesa de fórmica. Bamba das pernas. Partiram cedo. Os sinos da catedral chamavam para a missa das oito. Embarcaram num reboque raquítico caindo aos pedaços. Melancolia!

Hoje um possante caminhão levou a frigidér – a geladeira Prosdócimo. Comprada em suaves prestações na loja da esquina, loja de departamentos. A arca de madeira clara, imitação barata de cerejeira, escureceu com o tempo. O vidro bisoteado de uma das portinholas estava trincado e os puxadores das três gavetas, no percurso da existência, sumiram. Um catador de lixo fez o bondoso favor de recebê-la de presente. Há mais tempo vi “ganhar o olho da rua” outros móveis e os objetos de cama e mesa que compunham a pequenina quitinete. Só ficou: a colcha vermelha de cetim; a petisqueira; o velho e todo lapiado fogão de duas bocas; a improvisada estante de livros e a cadeira de aproximação. Gasta, surrada. Vou mandar arrumá-la.

Presentão da madrinha Lili, a colcha compôs a cama durante muitos invernos e verões. Está enxovalhada, abatida, sem brilho. A petisqueira de mogno, vinda nos espólios da tia Doca, continua firme e imponente cheirando a passado. Adquirida nas vantagens da liquidação do Empório dos Móveis, a cadeira – madeira nobre, estilo colonial – permaneceu todo esse tempo sombria num canto da sala-quarto. Chique e valiosa, testemunhou momentos relaxantes no aconchego da quitinete. Emprestava respeito ao ambiente. O pequeno fogão maltratado pelo uso, recebido de segunda mão, um caco, continua insignificante esquecido próximo à janela da cozinha. Composta de quatro tábuas e tijolos, a prateleira dos livros – companheiros dia e noite, permaneceu ao lado da bicama azul listada. Não sei se registrou a partida dos que se foram. Talvez nem notou.

Conviviam comigo há três décadas. Igual a casamento, no começo tudo cor de rosa, agradavam–me bastante. Usei-os muito, bons proveitos. Chegou ao fim nossa vida sob o mesmo teto. Quando vieram em datas diferentes compartilhar da minha companhia deram-me muita alegria, prazer, bem-estar. Foram bem recebidos. A separação tornou-se necessária. Com o passar dos anos ficaram velhos, démodé, sem os atrativos da coisa nova. Cansou a visão. Virou rotina a mesmice do dia-a-dia: manhã, tarde e noite – nada mudava. Quis novidades, linhas avançadas, móveis com design arrojados, modernos, últimas tendências da linha moveleira.

Preciso esconder as pinceladas que o tempo gravou em mim.

Para nenhum deles justifiquei o motivo da despedida. Em cada bota-fora devassou lembranças e sentimentos escondidos, ou camuflados nas suas utilidades, que a vida se encarregou de esquecer.

Ione Jaeger - setembro de 2009

2 comentários:

  1. poesia do dia a dia.cronica de uma vida.
    maravilhoso Ione.

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  2. RESPONDI VIA MAIL, MAS FALTOU DIZER QUE, POR TUDO ISSO, EU ACHO SENSACIONAL. É LETRA QUE TRADUZ A VIDA. NESSA COMPOSIÇÃO, QUE NA VERDADE FAZ UMA TRADUÇÃO, PERCEBEMOS QUE SOMOS UM POUCO DIVINOS. CONSEGUIMOS, RESPEITADAS AS PROPORÇÕES, CRIAR VIDA DO NADA. PARABÉNS!

    MQ

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