sábado, 12 de dezembro de 2009

MARCELO SGUASSABIA


Marcelo Sguassábia


SANTA LETÍCIA







Letícia, em seu compartimento estanque, se bastava. Vivia debaixo de uma campânula guardada por um querubim estrábico, numa imunidade vitalícia às dores do parto, à lavagem da louça, às filas nas repartições e à rabugice dos maridos sovinas e dominadores. “Façam o que quiserem, contanto que poupem a Letícia” era o veredito invariável sob qualquer pretexto e em qualquer ocasião, naqueles sítios de lagartos e desgraças.



Nada que se comparasse àquela que chamavam de Letícia, e que raras vezes se afastava de seus cães e de sua coleção de abajures. Era o tesão das rodas regadas a cerveja. Era a inveja e o assunto nos salões de beleza. Era o exemplo de virtude no sermão do padre, que botava as duas mãos no fogo do inferno e uma terceira se tivesse pela sua inteireza de caráter.



Assim a vida corria daquele jeito de costume, com a cidade a lhe estender tapetes, a lhe levar no colo e a lhe cobrir de afagos, soprando-lhe o dodói antes que se machucasse. Passou a ser o tema das redações escolares e o samba-enredo dos blocos e escolas no carnaval. Recebeu, da câmara dos vereadores, o título de Cidadã Benemérita, mesmo não tendo feito benemerência alguma. Nos dias cívicos, subia ao palanque e fazia sombra ao poder constituído. Sem que soubesse, pois provavelmente a coisa se articulava na surdina para lhe fazer surpresa, era tida como certa a aprovação da mudança do nome do município para Leticiópolis.



Para Letícia, só boas novas. Que não viessem a ela com problemas e aborrecimentos. Poupassem-na de boletins com notas menores que dez, da morte súbita de entes queridos, do furacão em Guadalupe e suas 2774 vítimas. Para o olhar e a degustação de Letícia, só as bem-aventuranças, os objetos desinfetados e as obras-primas consagradas pelo tempo. Só os heróis condecorados por ações de bravura, só o mais entorpecente incenso da Pérsia. Conhecer Letícia e jogar-se sem reservas aos seus pés era o ticket para o paraíso. Para isso organizavam excursões e vigílias à sua porta, na esperança de vê-la de relance. E nessa tietagem havia respeito, pois ninguém ousaria pedir-lhe um autógrafo ou uma foto ao seu lado. Sabiam que Letícia era exclusiva das molduras e altares, a ela faziam novenas e promessas embora ninguém a tivesse nomeado padroeira ou benfeitora. Na verdade, daquela boca de 28 anos quase ninguém ouvira palavra, e quanto mais muda Letícia mais ensurdecedora era a sua adoração.



Quando souberam que naquela manhã havia sido vista, sem motivo aparente e por um cochilo do querubim estrábico, nas imediações da estação ferroviária, correram esbaforidos o bispo, o promotor de justiça, o prefeito safenado, o grão-mestre, o diretor do colégio e o presidente do clube. Mas o trem chegou mais rápido e a encontrou nua, deitada nos trilhos.




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