quarta-feira, 23 de setembro de 2009

PAPO DE CULTURA - IONE JAEGER




NÃO ME CHAME DE TIA!










NÃO ME CHAME DE TIA!





Eu não sou sua tia.

Tia é uma pessoa pertencente à família, ligada por laços de sangue ou por afinidade. Eu não estou incluída nestes grupos em relação a você.

Tenho, mais ou menos vinte e cinco sobrinhos filhos de meus nove irmãos, residentes e domiciliados em diversas cidades do torrão brasileiro. Em Novo Hamburgo nenhum. Alguns dos meus verdadeiros sobrinhos (consangüíneos) só os conheço por foto. Outros vejo esporadicamente, o restante há mais de vinte anos não nos encontramos. São meus reais sobrinhos, mesmo não existindo coexistência física próxima, fazem parte da minha família. Cultivamos tradições e histórias comuns que articulam a unidade do grupo familial.

Chamar a pessoas desconhecidas de tio e tia contribui para enfraquecer, estiolar e desintegrar a célula máter da sociedade, descaracterizando-a da concepção de grupo de relações estreitas e/ou pessoais. Mesmo vivendo um na China e outro no Japão, há conhecimento ou mera referência entre uns e outros membros; referências de parentesco, de histórias, de nome, sobrenome, apelido – Zezito da Nair, Ernane da tia Elza, etc.

Qual o sentido da família, hoje? Condições sócio-econômicas desalinhadas (pobreza, miséria, carência de vida digna, educação ministrada pela mestra Tia Telinha, desencontros, desunião, falta de dinheiro...) intrometendo-se no bojo dessa sociedade primária, somadas à instabilidade do núcleo da família hodierna, fazem com que a comunidade desse grupo sofra desgastes de valores e paradigmas na estrutura. Tais pressupostos dão origem a transformações nos padrões de relacionamento e vinculações intrafamiliares.

Para complementar todo este quadro, pessoas desavisadas, ingênuas ou simplórias, vêm distribuir com prodigalidade, no final do século, parentes a torto e a direito. No meio de tantos tios e tias não identificáveis convivem os titulados ex (ex-esposa, ex-marido, ex-sogro, ex-tio, ,,,)

Nesta conjuntura social babélica de ser família, ainda, nos adotam por parentes sem saber quem somos. E é filhos matando pais, tio baleando sobrinho, é sobrinho assaltando tia: Fica quieta, tia, é um assalto. Passa a bolsa, tia!...

Aceito o tratamento de tia vindo de meninos da rua, dos esmoleiros, desvalidos de conceituação interiorizada do termo família, sem cultura para saber usar outro vocativo.



Ione Jaeger,

Setembro de 1999

Novo Hamburgo







DEIXE A TIA PASSAR



A vizinha do apartamento ao lado descia as escadas do edifício conduzindo, no guiador, uma cadelinha. Encontramo-nos. Surpreendida conheci, naquele momento, uma nova sobrinha – branca, peluda, quadrúpede, irracional, balançando a cauda – quando ouvi a jovem senhora solicitar:

– Sissi, deixe a tia passar!

Subi o restante dos degraus. Entrei na quitinete. O molho de chaves caiu no chão. Fez barulho. O passarinho importado, na gaiola dourada suspensa no marco da porta da cozinha, trinou um suave e harmonioso canto. O mesmo gorjeio há dois anos. Juntei as chaves atirando-as no sofá. Refleti:

– Será que sou, também, sua tia? Reclamou do ruído? Saudou à minha chegada? Que houve? Bati palmas para, novamente, ouvi-lo.

– Pô, tia de cadela, dialogando com canário de camelô! É a vida! Não me queixo. Preenche vazios. Substitui pessoas...

Conjeturando na filosofia existencial, aferindo valores que nos dão e que damos às experiências vividas, dirigi-me à janela para admirar o recolher do dia. Num telhado próximo, um gato amarelo, desbotado, anêmico, com jeito de excluído e um olhar pidão, encarou-me. Olho no olho!

No outro dia, eu atravessava a rua, um carroceiro parado com seu veículo na faixa de segurança aguardando o sinal abrir adverte à besta:

– Deixe a tia passar!...



Ione Jaeger

Setembro de 1999.

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