terça-feira, 30 de março de 2010

DIRETO DO RIO DE JANEIRO - Nelson Tangerini

Nelson Tangerini

CORA CORALINA, A BORBOLETA


Crônica de Affonso Romano de Sant´Anna





Cora Coralina virou borboleta. Conheci-a ainda crisálida há uns 20 anos, lá em Goiás Velho – aquela cidade colonial com ladeiras, aquele calçamento de imensas pedras, parecendo uma Minas Gerais lá longe. A cidade inda não havia sido transformada em atração turística, mas Cora, sim.



Cora estava ali. Velhinha, mas rija e falante. O historiador Mário da Silva Brito e eu ouvíamos suas estórias, enquanto ela chamava um bobo que a servia. Sim, a cidade tinha um número elevado do que se chamava de bobos e havia várias teorias para explicar isto, desde casamentos consangüíneos até a água da cidade.



Cora já era conhecida como singular figura, pois havia sido citada por Drummond numa de suas crônicas. Tinha uma biografia e uma vida amorosa inusitadas. Lembro-me ter contado que havia fugido com seu namorado na boléia de um caminhão e das peripécias desafiando a família. E afirmava sempre que a poesia a salvara, dera sentido à sua vida. Essa mulher pequena e atrevida era também notória como doceira e vivia numa casa colonialmente simplicíssima.



O fato é que Cora, além de atração turística e jornalística, acabou virando até tema de teses universitárias como uma pré-feminista, como autora primitiva e espontânea.



Mas agora virou borboleta.



Ora, deu-se que Nirton Tangerini (*), pesquisador da vida de borboletas, certo dia estava na localidade de Jataí, lá em Goiás, e ao passar por um posto de gasolina viu no chão, já meio estropiada, uma espécie desconhecida do lepidóptero. (Não se estranhem, mas as borboletas com aquele esvoaçando colorido nas asas são mesmo lepidópteros, mas essa palavra pesada não as impede de voar.).



Tangerini a recolheu. Ele não é entomólogo formado, mas é um borboletólogo de alma. Pesquisa borboletas, que às vezes chamamos de mariposas, junto com o entomólogo francês Claude Lemaire. Resultado: o seu achado está regitrado no livro The Saturnidae of América (Editora Goecke & Evers, Keltern, 2002). E assim aladamente, a nossa Cora Coralina está registrada como Molippa coracoralinae.



Esse Tangerini é irmão de outro Tangerini, o Nelson, professor do ensino médio, libertário, pacifista e ecologista. Ambos insistem em salvar o mundo através de ações miúdas. Miúdas como a Cora original e a sua metamorfose alada.



Certa vez, outro borboletólogo – Luiz Soledad Otero – deu-me, além de livros seus sobre o assunto, várias crisálidas, que um dia desabrocharam em minha casa. Foi deslumbrante. “Borboletas”, como ele dizia, “são consideradas universalmente símbolos da perfeição e amor, transição do corpóreo para a alma, vôo de um espírito anteriormente preso à terra sonhando com a condição aldada”.



Os poetas barrocos viviam fazendo poemas para as mariposas girando em torno da vela, retratando assim a ânsia de conhecimento e a fugacidade da vida. Tangerini me revela que algumas mariposas macho saem de dia e as fêmeas saem à noite. E que elas se encontram no crepúsculo. Isto que já deu samba de Adoniran Barbosa, pode sugerir outras metafísicas amorosas.



De minha parte, sempre me lembro de um texto de Aníbal Machado, que borboleteando entre a prosa e a poesia, dizia algo que funciona como um otimista princípio da vida:



“Faça o que eu lhe digo: solte uma borboleta.



Se não der certo, solte várias de cores diversas”.



santanna@novanet.com.br


Crônica publicada no jornal ESTADO DE MINAS,


Suplemento CULTURA,

Pág. 8, Domingo, 16 de janeiro de 2003.



(*) Nirton Tangerini, 69 anos, é biólogo formado em Ciências Naturais pela Universidade Gama Filho e tem vários trabalhos publicados sobre lepidóptera [borboletas]. É professor aposentado.

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