segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

PAPO DE CULTURA - Ione Jaeger














Ione Jaeger



NATAL 4




NATAL SEM PRESENTES








Artur chegou cedo. Encontrou a mãe na cozinha fazendo biscoitos para o Natal:

– Tuca, meu filho, vem cá!

– Ih, mãe! Sermão?

– Eu lá sou padre, guri, pra fazer sermão! Quero toda a verdade absoluta. Por que chegou cedo, parecendo pimentão vermelho? Fala e não me enrola!

– Nada disso, Mamita!

– Essa não! Não mesmo! Quem me chamava assim bateu as asas e foi atrás da primeira sirigaita que apareceu. Arruma outro nome carinhoso para me passar a conversa.

– Dona Gilda, calma! Sova tua neura na massa dos biscoito!

– Vamos, rapaz, desembucha! O que houve? Matou aula?

– Não inventa, mãe! A professora de História foi a uma reunião do MEC e não tivemos os dois últimos períodos. Pegamos uma pelada no pátio da paróquia. Eu fiz três gol.

– A professora foi aonde, moleque?

– Foi numa reunião do MEC!

– Meque! Que invenção é esta?

– MEC quer dizer Ministério de Educação e Cultura.

– Mistério, mistério? Com certeza querem ensinar nas escolas a tal educação sexual. Você está com quatorze anos tem muito feijão para comer até poder falar essas coisas. Por isso é reunião de mistérios...

– Puxa, dona Gilda, a senhora não entende coisíssima alguma! Por que em vez de ficar, das seis às dez horas da noite, olhando novelas não vai fazer um cursinho? Mãe! O mundo evoluiu, mudou. A senhora ficou parada no tempo, por causa disso perdeu o marido e...

A mulher baqueou. Estarrecida se portou por segundos, reagiu, perdeu as travas. Falava, misturava, sovava a massa dos biscoitos, lavava as mãos, um prato, uma colher, varria e limpava o assoalho, sem calar a boca. O filho resmungou:

– Parece que engoliu agulha de vitrola. Dá um tempo! Toma fôlego! Retiro o que eu disse.

Dona Gilda, aparentando calma, falou num tom amargurado:

– Onde tu ouviu essa história de agulha de vitrola? A gente dizia isto quando eu era guriazinha. Vitrola e agulha não se fala nesta casa desde que tu tinha cinco anos, desde que o desgraçado foi embora daqui com a vagabundinha. Você não se encontra com ele há nove anos e meio... Ou ele vem em sonho fazer tua cabeça contra esta otária que te bota o pão na mesa e te cobre o corpo com trapos...

– Mãe, te acalma, respira fundo. A senhora é uma mulher ainda moça, não é nenhum caco, tem um corpo e um rosto bonito, por que tanto mau humor? Ora você me trata como bebê, ora como adulto. Você, com toda tua má vontade com a vida, me criou ensinando-me muita coisa boa, mesmo me vigiando. Nos teus sermões, desafios para eu buscar verdades, aprendi lições várias...

– Pára, Arturzinho, pára! Vem você com poesias. Poesia é coisa de vagabundo! Hum, herdou a veia do ... do teu pai, é do teu pai mesmo.

– Agora sim, dona Gilda, gostei de ver. A senhora falou teu pai. A pessoa que deve ter maior certeza que ele é meu pai é a senhora. Não é?

Segurando a vassoura, fez gestos de bater com o cabo no rapaz. Só ameaçou:

– Você ultimamente anda muito senhor de si, rapazinho. Se eu não tivesse certeza que o senhor Joaquim França mora a muitos quilômetros longe daqui, onde o judas perdeu as botas, eu jurava que você anda conversando com ele. Fala palavras e frases que saíam da boca dele, pergunta toda hora coisas sobre ele. Na semana passada me pediu que fizesse pudim de laranja, o doce preferido. Tu nunca tinha me pedido que fizesse pudim de laranja. Juro que estou desconfiada... Ó, não! Passou uma idéia funesta na minha cabeça – será que ele morreu?

– Que que a senhora falou? Ele morreu?

– Não! Não pode ser! A gente ficaria sabendo. Alguém, com certeza, viria avisar. Meu pai do Céu...

Gilda caminhava de um lado para o outro, resmungava coisas inaudíveis. Olhando para o nada, próxima da janela, exclamou num tom desgastado, sofrido:

– Alguma coisa aconteceu com ele, ou está acontecendo! Tenho sensação estranha. Tuca, a vida inteira você nunca falou nele. De uns tempos para cá, você tem perguntado sobre minha vida com ele, fala como ele... Sinto que ele anda te rondando e... Artur, jura, você, por acaso andou visitando a Mãe Olga, aquela vidente, ex-vizinha da tua tia Luíza? Não olha pro chão, criatura, fala!

– Dona Gilda, olha bem nos olhos do teu único filho e fala a verdade. Se o pai uma hora dessas batesse na porta, sorrindo, e dissesse – Quero um presente de Natal, o que a senhora faria? Péra, não foge, vem cá, responde!

– Eu corria a vassouradas, fazia dele um picadinho...

– Dona Gilda, não me dê as costas, olhe para mim!

– Pára, Artur, tenho que terminar os biscoitos e depois tenho toda a lida da casa... Este ano o Natal é sem presentes, mas a casa bem limpinha, já lavei as paredes, as velhas cortinas, é importante para receber a chegada do Salvador. Também não podem faltar os biscoitos, receita que recebi da minha avó, que recebeu da vó Biluca. Fiz quatro vidros de doce de figo. Ainda falta fazer as broinhas de polvilho. Me deixa trabalhar!

O jovem segurando-a pelos braços:

– Mãe, a senhora nunca deixou um minuto de pensar, lembrar, gostar dele. Ama-o como da primeira vez, não é verdade. Lá no fundo do coração a senhora o perdôou desde o minuto que sentiu a primeira saudade, a falta do grande amor da sua vida, o único. Mãe, a senhora é uma pessoa boa, tem tido sempre muita coragem resignação frente a problemas da vida. Sem ser beata, ajuda a vizinhança levando palavras de conforto quando alguém precisa. Abra o coração para você mesma, ame-se, ignore o que pensam ou julgam os outros. Nunca olhou para outro homem...

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Véspera de Natal. O dia passou lento, arrastado. Anoitecia. O sino da igreja tocou a Hora do Ângelus. Na casa da rua Arcoverde, os dois moradores – mãe e filho – faziam as tarefas costumeiras. O rapaz aproveitava as férias escolares. A mulher preparava a janta. Um som forte e comprido da campainha quebra o silêncio.

– Dona Gilda, vá receber o seu sonhado presente de Natal!



Ione Jaeger – Natal de 2006

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