Nelson Tangerini
PROCURO UM ROSTO PARA RUFINA
Sua face desapareceu no tempo. Soubemos apenas que faleceu na flor da idade, em 1903, quando sua filha caçula, Antônia de Oliveira Soares [futuramente, Antônia Marzullo], tinha apenas 9 anos.
Misteriosamente, suas fotografias desapareceram para todo o sempre. Foram rasgadas? Foram queimadas?
Sou um caçador de fotos da família, um historiador, um memorialista. Gosto de esmiuçar o insondável, o mistério. Coisas de jornalista, de escritor. Aos poucos, vou sendo reconhecido como tal por alguns parentes e amigos. E vou recebendo elogios – e críticas, também.
“Você vive do passado”, dizem os que me não compreendem.
Rufina de Oliveira, filha de Cassiano Cândido de Oliveira Neves e Adelaide Siqueira, foi casada com o português Manuel Gomes Soares, com quem teve duas filhas: Eustáchia [Intá] e Antônia.
Tinha um irmão, Pompeu, - dizem - loiro, alto, elegante, magro, de olhos azuis, que sempre visitava as sobrinhas e todos de seu sangue.
Temos uma foto do “tio Pompeu” - autografada para a sobrinha.
Ele também aparece em outra foto, menino, loirinho, ao lado da avó materna. Na parte de trás, escreveu Antônia: “Minha avó Adelaide e meu tio Pompeu”.
Manuel e Rufina casaram-se e foram morar numa casa espaçosa em Santa Teresa, no Morro dos Prazeres, onde as meninas nasceram e viveram a adolescência. Estudavam num colégio de irmãs no Cosme Velho e iam a pé, caminhando pela Rua Alice. Talvez tenham se esbarrado, um dia, com o seriíssimo Sr. Joaquim Maria Machado de Assis.
O Rio de Janeiro, então capital do Brasil, devia ser mesmo uma Cidade Maravilhosa, um paraíso. As borboletas até preferiam as flores dos jardins da casa do Bruxo do Cosme Velho...
O que conversavam as duas irmãs pelo caminho, em meio a imensa e bela Floresta da Tijuca. Brigavam? Trocavam confissões? Inúmeros pássaros gorjeavam para elas.
Uma ferida na perna da elegante Rufina, causada pelo couro de sua bota, agravaria e comprometeria para sempre a sua saúde.
A ferida nunca fechava.
Segundo Antônia, o pai, que já namorava uma senhora de nome Cristina, não tinha paciência com a esposa.
Em sua ignorância, Manuel achava que era uma doença contagiosa. Não lhe passou pela cabeça que Rufina pudesse ser diabética. Por isto, lavava toda a casa de forma grosseira, atirando baldes de água com sabão no quarto, para debaixo da cama da esposa, que lentamente se despedia das filhas.
Eponina, uma negra tão bonita quando a valsa que tem seu nome, de Ernesto Nazareth, era vizinha do casal, no Morro dos Prazeres - e conheceu Rufina.
A bela senhora, de delicados modos, de caminhar cadenciado, era tia de Maria Amália de Azevedo, a Dindinha, madrinha de Dinorah Marzullo.
Foi Eponina quem apresentou Dindinha à Antônia, e as duas tornaram-se amigas.
E o mistério está aí. Porque Dindinha disse, certa vez, para Nirton Tangerini, neto de Antônia, que Rufina, irmã do branquelo Pompeu, era “mulata”.
O que teria acontecido com os retratos de Rufina? Sumiram porque era mulata? Ou sumiram porque a interesseira Cristina jogou-os fora?
Quem sabe ainda escrevo um complicado romance: “O mistério de Rufina”.
...
Num distante 1943, Dinah vê seu avô, Manuel Gomes Soares, leitor do poeta - também lusitano – Abílio Guerra Junqueiro, mergulhado em seu silêncio e suas confabulações, a andar pela casa com uma corda na mão. O velho estava meio caduco, mas a neta jamais poderia imaginar que ele viesse a se enfocar com aquela corda.
Porque teria se suicidado? Por remorso? Por decepção? Ou porque suas finanças teriam ido pelo ralo?
Em Fortaleza, Ceará, onde estava a trabalho, Maurício Marzullo, seu neto poeta, recebe a notícia, por carta, da morte de Manuel; e escreve, no dia 12 de agosto daquele ano, na terra do romântico José Alencar, um lindo soneto para o avô:
VOVÔ SOARES
Inda não sei por que te foste embora,
deixando a nossa casa abandonada,
a mesma casa, onde a Tristeza mora,
des quando entrou a Dor de cambulhada.
Subiste aos Céus numa tristonha hora,
em que nossa família, dispersada,
a lastimar-se, enternecida, chora
a grande perda para nós causada.
Lutando pelo pão de cada dia,
pois não se vive, eu sei, de caridade,
equidistante, cada qual porfia
- talvez, não suportando a ansiedade,
imerso numa grande nostalgia,
morrendo, Vovozinho, de saudade!...
Logo após a morte do português, a espertalhona Cristina vai à casa de Dinah, na Rua Itapiru, bairro Catumbi, para apanhar uma pasta com documentos do Vovô Soares.
Outro mistério: por que Manuel morava com Dinah e não com Cristina? O que houve com o casal? Estariam separados? Não viviam bem? Por que seus documentos estavam na casa da neta? Por que Manuel jamais falou para as filhas e para os netos sobre posses?
Ainda abalada com a morte do avô, a neta entrega à esposa de Manuel a referida pasta, que continha documentos valiosíssimos.
Cristina, saltitante de alegria, viaja para Portugal e vende uma quinta de propriedade do marido. Pega todo o dinheiro e não dá um tostão às filhas: Eustáchia e Antônia. E desaparece.
As filhas e os netos, por sua vez, “deixaram o barco rolar”...
A vida corre... Anos mais tarde, um bisneto escritor da afrodescendente Rufina procura pelo seu retrato.
Nelson Tangerini, 55 anos, é escritor, jornalista, poeta, compositor, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.
nmtangerini@yahoo.com.br, n.tangerini@uol.com.br
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